sábado, 5 de novembro de 2011

Primavera Solitária

Primavera solitária

Todo dia no mesmo caminho encontra-se Lúcia, parada em frente à sua casa, vendo o por do sol e observando o movimento do vai e vem das pessoas. Um dia ela fica na porta ou encostada no portão, mas sempre olhando para o lado e para o outro. Outro dia foi diferente, ela estava pintando seu portão de verde. Lúcia havia reparado que a tinta estava envelhecida pelo tempo e decidiu fazer o trabalho. Sozinha.

Domingo é o melhor dia para Lúcia. Vai à igreja com suas melhores roupas. Este é o dia do alívio, ocasião em que tenta apagar os fantasmas do passado. Consolo de uma vida a ermo, não por escolha dela, mas sim, de sua mãe. Sofia, ou melhor, Irmã Sofia, como era conhecida, faleceu e deixou a sua filha e uma casa para viverem sozinhas. Lúcia foi devota a sua mãe em todos os sentidos, opiniões e ideias. Respeito era fundamental. Não poderia ser diferente na escolha da religião, a maneira como se vestia, por aonde a mãe ia, ela a acompanhava. Afinal, para que serve uma filha sem impulsos, sem alternativas, a não ser para acompanhar a mãe em todos os lugares.

Sexo. Lúcia jamais fez sexo na vida. Ela descobriu o significado deste prazer, ao menos tenta desvendar, vendo as novelas que tanto adora. Tudo é novo e recente. Seu único livro de cabeceira é a Bíblia Sagrada, mas as coisas estão mudando de direção.

Sua primeira televisão foi muito tempo depois da morte de sua mãe. Quando irmã Sófia era viva dizia: “que televisão era pecado”. O olho do demônio habitava naquele quadrado negro. Após a morte de sua mãe, Lúcia continuou com este estigma. O medo de ir ao inferno ficou perpetuado em sua cabeça por um longo tempo. Mas quando fazia suas visitas esporádicas aos irmãos menos rigorosos foi descobrindo que ver os programas, novelas e noticiários não afetavam sua essência religiosa. Depois disso, comprou uma televisão de 14 polegadas e acompanha todas as novelas. Ficou viciada.

Vendo a mocinha com o mocinho, imagina como deve ser um beijo. Mas não um beijo simples, comum e ordinário. Deve ser aquele beijo, que molha o canto dos lábios, tira completamente o seu fôlego e te constrange por inteiro. Afinal, nunca beijou na vida graças às escolhas dos outros, sua única alternativa é sonhar.

Jamais podia contar esses ou outros desejos a sua mãe, era pecado. Irmã Sófia era uma fundamentalista a Palavra de Deus, seguia rigorosamente os preceitos bíblicos. Fora isso, não havia argumentação. Desde criança Lúcia acompanha sua mãe aos cultos. Foram 38 anos agindo da mesma forma, até que o último suspiro de sua mãe e suas últimas palavras foram:

- Não vejo à hora de encontrar o Salvador, eu não vim para este mundo.

Lúcia chora silenciosamente no quarto do hospital, ao mesmo tempo, os enfermeiros cobrem sua mãe. Ela reflete na situação e pensa: “Sozinha! Conheci meu pai apenas por fotografias, agora minha mãe se foi. Nem ao menos ela me tranquilizou em saber como será daqui para frente. Sua preocupação era a sua salvação, apenas isso.”

“O mês de setembro completa 12 anos desde a morte da mamãe. Período de isolamento involuntário, reclusa nas paredes branca do quarto e da sala. Se eu menos pudesse escolher o que queria para a minha vida”, Lúcia medita. A espera o por do sol lhe é confortante. É a hora de ver as pessoas.

Mas há vantagens em ter a solidão como companheira, outros sentidos aparecem. Lúcia vê minuciosamente como é o movimento das pessoas, as roupas, de uma maneira singular. O vestido roxo que aquela menina usa, não em um simples roxo, mas um violeta parecido com as flores que têm no meu jardim.

Diante disso, é incrível observar as mudanças da lua. Sua companheira de anos lhe revela um segredo que já não é mais novidade: a primavera já vem e com ela mais uma temporada de solidão, com ela as cores estão se renovando.

até breve...

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